
As imagens de uma criança correndo descalça no quintal, inventando mundos imaginários com tampinhas, caixas e bonecos, parecem cada vez mais raras. Hoje, em meio a rotinas sobrecarregadas, excesso de telas e pouca liberdade nos espaços urbanos, a infância vem sendo encurtada. O brincar espontâneo é considerado pela psicologia e pela pedagogia como a linguagem natural da infância. É por meio dele que a criança expressa emoções, elabora experiências e encontra caminhos para lidar com desafios cotidianos.
Brincar é um direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ainda assim, dados do UNICEF mostram que as crianças têm cada vez menos oportunidades de exercê-lo. Pesquisas apontam que, nas últimas duas décadas, houve uma redução significativa do tempo livre na infância, em parte pelo aumento da carga escolar e, em paralelo, pelo avanço do uso de telas digitais.
Para Raqueline Souza, Secretária de Educação de Neópolis – SE, parceira da Fundação Abrinq por meio do Projeto Brincar, essa redução pode acarretar riscos significativos para o desenvolvimento infantil, como problemas de saúde mental, dificuldades sociais, déficits cognitivos, sedentarismo e baixa autoconfiança. “A falta de brincadeiras livres compromete a expressão emocional e a capacidade de interação”, acrescenta.
A infância vem sendo moldada por uma lógica utilitarista, na qual o valor da criança se mede pelo desempenho escolar ou pela preparação para o futuro. Nesse cenário, a brincadeira livre, aquela que nasce da imaginação e da espontaneidade, vai sendo deixada de lado. Mas é justamente esse tipo de experiência que favorece a criatividade, a autonomia e o equilíbrio emocional.
De acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), crianças de 3 a 4 anos devem realizar ao menos 180 minutos diários de atividades que envolvam movimento, sendo pelo menos uma hora dedicada a práticas moderadas ou vigorosas, como correr, andar de bicicleta ou praticar esportes compatíveis com a idade. Já entre os 5 e 17 anos, a recomendação é de, no mínimo, 60 minutos por dia de atividade física com essa mesma intensidade.
Em relação ao uso de telas, as diretrizes da OMS são para crianças menores de 2 anos, o ideal é evitar completamente, com exceção de videochamadas acompanhadas por um adulto. Entre 2 e 5 anos, o tempo de exposição deve ser de, no máximo, uma hora por dia, sempre com conteúdo de qualidade e supervisão. Dos 6 aos 12 anos, o limite recomendado é de até duas horas diárias, também com acompanhamento adulto. A partir dessa idade, é fundamental que os responsáveis estabeleçam regras consistentes de uso, garantindo que o tempo diante das telas não comprometa o sono, a atividade física ou as responsabilidades escolares.
Desafios que limitam o brincar das crianças
Outro fator que compromete o direito de brincar está ligado à insegurança dos ambientes urbanos. A falta de espaços públicos adequados, somada à violência, faz com que muitas crianças fiquem restritas ao ambiente doméstico e, com frequência, substituam as brincadeiras ao ar livre por horas diante de telas. Um levantamento da Fundação Abrinq publicado neste ano no Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2025 mostra que crianças que vivem em territórios mais vulneráveis enfrentam maiores barreiras para brincar livremente em praças, ruas e parques.
Raqueline acredita que criar espaços de brincadeira em locais públicos e estimular campanhas sobre o valor do brincar são passos essenciais.
“Essas ações podem ajudar a superar as limitações da violência urbana e proporcionar oportunidades para que as crianças brinquem livremente”, afirma.
Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o brincar livre tem um papel insubstituível no desenvolvimento infantil. É nesse espaço de experimentação que a criança erra, repete, cria soluções próprias e exercita a imaginação sem medo de julgamentos. Ao brincar, ela desenvolve autonomia, criatividade, linguagem simbólica, capacidade de resolver problemas, autorregulação, tolerância à frustração e uma sociabilidade genuína.
O adulto, por sua vez, também tem um papel fundamental nesse processo. “Cabe a ele garantir tempo, espaço e segurança; observar e intervir minimamente, apenas para ampliar o vocabulário, oferecer materiais, mediar conflitos quando necessário e modelar comportamentos”, explica o dr. Lívio Francisco da Silva Chaves, do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da SBP.
Além disso, o brincar dirigido, como esportes, oficinas ou atividades artísticas, também traz benefícios importantes. Essas práticas ajudam a desenvolver habilidades motoras específicas, o trabalho em equipe, a disciplina, a persistência e contribuem para a saúde física e emocional das crianças.
Como estimular o brincar mesmo com limitações de espaço
Diante desse cenário, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) reforça a importância de preservar três eixos fundamentais do brincar: movimento, socialização e criatividade. Mesmo com as limitações impostas pelos espaços urbanos, há formas simples de garantir que as crianças continuem se desenvolvendo de maneira saudável e prazerosa.
Dentro de casa, por exemplo, pequenos circuitos com fita crepe, almofadas ou lençóis podem se transformar em percursos desafiadores. Dançar, pular corda, fazer ioga infantil e brincar de jogos de equilíbrio ajudam a movimentar o corpo e estimulam a imaginação.
Em condomínios e escolas, o uso programado de pátios, quadras e salões pode dar lugar a clubes de brincadeiras em pequenos grupos, com rodízio entre famílias. Já nas comunidades, a criação de ruas de lazer em horários definidos, com apoio de vizinhos e da guarda municipal, é uma forma simples e segura de devolver às crianças o espaço público.
Parcerias com unidades de saúde, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), organizações não governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil (OSCs) ou coletivos comunitários também são aliadas importantes, oferecendo brinquedotecas e oficinas acessíveis. Materiais simples, como caixas, panos, elásticos e sucata limpa, têm alto potencial lúdico e baixo custo, estimulando a criatividade sem depender de grandes recursos. Mesmo em espaços reduzidos, a natureza pode estar presente: hortas em vasos, pequenos jardins e a observação de insetos e plantas ajudam a despertar a curiosidade e trazem benefícios comprovados para a atenção e o humor.
A tecnologia, quando usada com propósito, também pode ser uma aliada. Aplicativos de caça ao tesouro, dança ou desafios motores, preferencialmente off-line e com a presença de adultos, incentivam o movimento e o convívio. O importante é que o tempo diante das telas tenha limites e que o foco permaneça na atividade física real. Por fim, construir uma rede de proteção, mapeando locais públicos relativamente seguros, e combinando trajetos e horários com as crianças reforça a segurança e amplia as possibilidades de brincar com liberdade.
Uma infância com espaço para ser infância
O brincar não deve ser encarado como pausa, mas como parte integrante da formação. Crianças que têm tempo e espaço para brincar apresentam maior capacidade de aprendizagem, melhores relações sociais e mais recursos emocionais para enfrentar as adversidades da vida.
O desafio está em mudar a percepção adulta. Reconhecer o brincar como ferramenta de saúde, criatividade e cidadania é essencial para garantir que toda criança cresça com dignidade.
“Brincar não é um luxo: é um pilar biológico, psicológico e social do desenvolvimento, e um direito garantido por lei. Cabe a famílias, escolas e ao poder público proteger o tempo e o espaço para a brincadeira todos os dias. Como regra prática: tempo diário de brincadeira livre, menos telas, ambientes preparados e oportunidades de movimento e convivência”, explica o Dr. Lívio Francisco da Silva Chaves, da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Pergunte a si mesmo(a) quando foi a última vez que viu uma criança brincando livremente e qual era a brincadeira que mais gostava quando era pequeno. São reflexões importantes que nos convidam à lembrança e à percepção do valor do brincar. Ao resgatar essas memórias, podemos observar que a brincadeira não foi apenas passatempo. Foi nela que aprendemos a negociar, a criar, a imaginar futuros possíveis. Foi nela que fomos, de fato, crianças.